Estado de Fluxo

Num mundo marcado pela velocidade das imagens lançadas cotidianamente à nossa frente – com sua pluralidade temática e esvaziamento de signos –, parecemos estar imersos apenas como espectadores na busca do seu próprio tempo individual, um tempo que precisa ser conquistado permanentemente por nós mesmos. Uma força para conseguirmos assimilar alguma beleza e subjetividade dentro desse emaranhado das coisas instantâneas. Assim, fortalecendo a condição de quem resiste, se ainda tivermos tempo para a arte da observação, seja ela num museu, numa cidade, numa rua aleatória de um mapa vasto e repleto de outros lugares, a nossa atenção poderá ser despertada e remodelada pela condição ativa de nosso próprio olhar. E essa é a transformação que se opera nas obras de Vera Reichert e nos aproxima da poética imersiva das águas.


No seu olhar de descoberta e apreensão, uma potência que é desenvolvida no interior de cada artista, há também um fluxo. Vera, como quem abre diálogos com Heráclito, compreende e expande em seu trabalho as condições de que “tudo no mundo flui e nada mais permanece”. A matéria da qual somos majoritariamente constituídos, a água, faz a vida circular em nós e na terra. Um movimento que opera uma diversidade de linguagens, da pintura à fotografia, da escultura à instalação, para estar presente em cada elemento dominante das suas criações. Aqui, a água é sua matéria-prima, a alma que encanta suas formas artísticas. Por isso, essa exposição – que pretende valorizar e difundir seu olhar dinâmico de artista observadora das nuances imersivas do mundo – é um convite para mergulharmos não apenas no seu pensamento artístico, mas também numa das profundas questões da humanidade, a urgente necessidade de preservarmos os simbolismos do elemento água, assim como o próprio elemento em si.


Desse modo, dando atenção para o projeto curatorial, as obras da artista são apresentadas no Museu de Arte de Brasília, no Distrito Federal, na forma de duas instalações que dialogam entre si em termos conceituais sem abdicar de sua essência formadora. As fotografias da Série Superfícies, que constituem o tríptico de entrada, rendem um tributo contemporâneo ao Museu de l´ Orangerie e a um dos precursores do Impressionismo – mais famoso movimento de Vanguarda do Modernismo –, com as belezas de Jean-Claude Monet e as suas celébres Ninféias no lago em Giverny, um artista que construiu seus próprios jardins e que nos inspira e desafia a pensar a dimensão poética da natureza que queremos preservar.


Em vista disso, sabendo que as águas não estão seguras, ou sequer podem ser consideradas indestrutíveis num planeta que parece se consumir constantemente, Vera Reichert extrai suas imagens. A artista, que pratica o mergulho submarino, faz que nos encantemos com uma premissa simples, mas de grandeza reveladora: ao ficarmos apenas na superfície, o mundo profundo e misterioso se oculta.


Na Série Gotas e Profundezas com fotografias de paisagens lacustres e subquáticas, a artista retoma o mito de Narciso, que vê a si mesmo espelhado na lâmina d’água. Porém, o espelho de Vera ilumina ao mesmo tempo que conscientiza. Ele nos coloca sob uma reflexão de que se não formos capazes de ver além dessa primeira imagem oscilando no raso, além do próprio eu e da nossa vaidade, se não formos capazes de nos preocuparmos uns com a sobrevivência dos outros, com a preservação da água como essência de todas as coisas, morreremos submersos na nossa própria imagem angustiante. Portanto, o que Vera nos propõe como espectadores de nós mesmos, é uma obra que, ao exaltar a água, evidencia do nascimento à morte, do perfume ao suor, da lágrima ao sangue, da bruma à chuva, esse líquido vital que eleva a nossa existência e define o mundo.


Em sua magnitude e condição simbólica, somos como povoados, cidades e civilizações que nasceram nas margens dos rios Amazonas, Nilo, Eufrates, Ganges, Pó, Danúbio, Sena, Tâmisa, Hudson, Prata, Paraná, Tietê, Guaíba, Sinos, entre milhares de outros que alimentam lagoas, mares e oceanos. Essa substância que nos liberta dos estreitos limites da nossa condição humana, nutre o corpo, o espírito, e também inspira obras poéticas, como a passagem da vida em Águas de março, de Tom Jobim e Elis; o fluxo de consciência em Água Viva, de Clarice Lispector; a fantasia em A Forma da Água, de Guillermo Del Toro; a magnificência barroca da Fontana Di Trevi, construída por Nicola Salvi, em Roma; o amor e a beleza no clássico Nascimento de Vênus, de Botticelli; a magia de O Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky, até a crítica e trágica Gota d’Água, de Chico Buarque. A poética da água nos ajuda a enfrentar a vida, é a garantia da nossa própria sobrevivência, intelectual e humana. Fria ou quente, para beber, tomar banho ou lavar a alma, para cozinhar, para gerar energia, para nos dar o peixe e o frescor, o que comer, para limpar, para abençoar.


As águas, como uma extensão do divino, do humano e do natural, expostas a partir das obras de Vera Reichert, nos revelam sua própria magia no estado de fluxo, estabelecendo uma troca constante de energia com o seu observador, mas elaborando, igualmente em sua condição inquieta, novas narrativas visuais, mais plurais e diversas, menos estanques num universo que tem o movimento como essência.


André Venzon

Artista visual, curador e gestor cultural.